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sábado, 19 de outubro de 2013

Uma breve história dos corsets, seus mitos e controvérsias.

Neste post, abordarei uma breve história do corset, nos mitos e controvérsias em torno da peça e no que acredita-se ser sua real função na história.
Embora hoje digamos "corset renascentista", "corset rococó", "corset vitoriano", a peça nem sempre foi chamada assim. No texto vou chamá-los como eram chamados em suas épocas pra ficar mais fácil de entender as mudanças ao longo dos tempos.  
Basicamente os nomes eram: bodies/pair of bodies/whalebone bodies até o século XVIII. No século XVIII até começo do século XIX eram denominados "stays" e só a partir de 1850, "corsets".

Controvérsias:
O corset (também chamado em português de espartilho) é a peça mais apaixonante e controversa dos últimos tempos. Quem ama a peça diz que é o ícone feminino da sensualidade; quem odeia, que é uma ferramenta da dominância e opressão masculina e que as mulheres eram "obrigadas" a usá-la. Os debates entre seus fãs e seus haters provocam furor há mais de um século. O corset também é responsável pela versão mega simplificada de que "libertou" as mulheres, como se as mulheres do passado fossem fashion victms sem cérebro e sem poder sobre suas ações. Não era bem assim como vou mostrar a seguir.

Breve história da peça
Peças semelhantes à corsets podem ser vistas em iconografias da grécia antiga, creta e até mesmo no começo da Idade Média, mas não há registros de que tais peças tinham a mesma estrutura e que foram usadas com frequencia pelas mulheres, então, considera-se que os primeiros corsets, na verdade chamados de bodies (whalebones bodies ou pair of bodies), foram desenvolvidos entre 1500–1550, feitos de barbatana de baleia e muito rígidos; davam ao corpo uma forma cônica. Havia tiras nos ombros pra sustentá-los e terminavam logo acima do osso pélvico. 
Existem imagens na internet de corset de ferro do século XVI, estes corsets realmente existiram mas não eram de uso fashion, eram ortopédicos para pessoas com problemas na coluna.

O pair of bodies à esquerda pertenceu à rainha Elizabeth I

A forma cônica dos bodies/stays permaneceu em voga até o século XVIII. O que variava era a altura, algumas vezes mais curta e com ou sem alças.

Stays


A peça enfraquece na revolução francesa e em 1810 reaparece na França num formato que separava os seios. Em 1840, após a invenção dos ilhóses, o formato dos stays vai se aproximando do da ampulheta, mas a peça ainda era longa até os quadris. A partir de 1850, como vão ler no texto mais abaixo, a peça ganha o nome de corset, enfatizando ainda mais a cintura - e perde as alças.


1810 - 1840

Entre 1880 e 1890 a peça ganha novo formato, com cintura mais baixa e busto cheio. Em 1900, surge o modelo de frente reta e curvas na parte de trás dando uma forma de "S" à silhueta feminina. 

Entre 1902 e 1908 a peça desce até os quadris com ligas para meias acopladas. Entre 1908–1914 o corset vai até quase o meio das pernas e já é usado com uma espécie de sutiã. Com a primeira guerra em 1917, a peça desaparece aos poucos. E só é reintroduzido por Christian Dior em fins de 1940, porém, a peça se assemelhava mais a um corselet. Os corsets/stays em sua forma e modelagem historicamente originais só ressurgem na década de 1980.

1900, 1908, 1917


Quem os usava?
Os bodies (whalebones bodies ou pair of bodies) foram primeiro usados nos anos de 1500 por aristocratas e nobres da Espanha e Itália. Rapidamente se espalharam pela França, Inglarerra e pela europa ocidental em geral. Depois passaram a ser usados pela classe alta, a seguir pela classe média e a partir dos anos 1800, com o advento da revolução industrial e a produção em massa de roupas, também pela classe trabalhadora.


Qual a função dos bodies, stays e corsets?
1. Postura:
Quando surgiu o propósito era criar uma silhueta altiva e artificial para a aristocracia, já que auto-apresentação era algo muito importante para os nobres. Especialmente na Renascença, a postura altiva que os rígidos whalebone bodies provocavam era admirada.
Por 400 anos, médicos acreditaram que o corpo era fraco e precisava de um suporte pra crescer forte, daí o motivo de crianças serem vestidas desde os 3 anos com a peça. Os meninos paravam de usar com 6 ou 7 anos e as meninas - consideradas com corpo mais fraco e que não se sustentaria sem apoio - usariam a peça por toda vida.
 
2. Suporte:
Outro grande propósito da peça era o suporte do busto. Vemos essa função de suporte dos seios especialmente nos stays do período império, época em que a cintura subiu para logo abaixo do busto. É aqui que entra o mito de as mulheres terem sido "obrigadas" a usar a peça, na verdade, havia sim uma exigência social, mas precisamos imaginar que os stays/corset funcionavam também como sutiãs.

stay de 1800

Quem vê corsets vitorianos sobreviventes percebe que alguns tinham ganchinhos externos. Essa era mais uma função da peça: juntar ou segurar a parte de cima (corpetes) com a da baixo (saias).


Afinar a cintura?
O fato de a cintura ser levemente afinada era parte do efeito de usá-lo desde muito cedo. Por vários séculos, ter cintura fina não era o destaque na silhueta. Se observarem a silhueta elisabetana, a barroca, a rococó e a império nenhuma delas tem foco na cintura, o foco só começa a partir da era romântica.


Revolução Francesa:
Os stays do século XVIII tinham a forma de cone como ilustrado acima, já naquela época alguns médicos achavam que provocava doenças e as mulheres seriam mais saudáveis se não os usassem. Em 1790, com a Revolução Francesa e início da moda Diretório e Império, muitas mulheres cortavam a parte de baixo dos stays e os usavam como brassiere (uma espécie de ancestral do sutiã, peça que sustentava os seios) com os vestidos Império. Essa foi a primeira vez em 300 anos que as mulheres abandonaram os stays. Na foto abaixo, uma brassiere - ancestral do sutiã - que pertenceu à imperatriz Joséphine.



Qual a relação entre a rejeição da peça na revolução francesa e a aristocracia?
Quando a revolução francesa explodiu, tudo que fosse relacionado à aristocracia devia ser simbolicamente destruído. Os stays eram uma peça que veio da aristocracia. Assim como saltos altos. Na revolução todos queriam e precisavam respirar liberdade.  Assim, stays e saltos altos foram substituídos por corpos livres e sapatilhas.


O retorno como "corset":
Roxey Ann Caplin, escritora e inventora britânica é apontada como a criadora do corset vitoriano. Em 1848 ela apresentou um "corset higiênico" com um busk em metal eletromagnético patenteado por ela (Joseph Cooper já havia inventado o busk de encaixe) que permitia o corset ser retirado sem ser totalmente desamarrado.
Em 1851 ela foi premiada pela invenção de seu novo modelo com fechamento de encaixe por busk de metal. O corset original inventado por Caplin está no Museu de Londres. É uma peça que aparentemente nunca foi usada e é na cor azul. Naquela época não eram usados corset coloridos, apenas em tons de branco, bege, cinza, o corset azul foi feito exclusivamente para ser apresentado ao público como nova invenção. Em 1851, Roxey Ann Caplin era a única fabricante deste tipo de modelo. Até então, as mulheres usavam os modelos estilo stays. Foi a partir daí que o design criado por ela influenciou os designs de corset do século XIX, os chamados "corsets vitorianos", que agora não tinham alças, exibiam o formato de ampulheta e não de cone como nos séculos anteriores.

Corset com busk de metal, barbatanas de baleia e na cor azul, nunca usado, feito pra exibição de 1851 de Roxey Ann Caplin

O corset mantinha o prestigio aristocrático, mas com o advento da produção em massa, eles foram levados à classe trabalhadora. As mulheres da classe trabalhadora vitoriana também usavam corsets, comprados prontos, no que chamaríamos hoje de tamanhos "P/M/G". Devido à esta "popularização" dos corsets, boa parte da fama elitista da peça cai por terra. O motivo de as mulheres vitorianas usavam corset é porque queriam estar (ou parecer) na moda. Mulheres flácidas e de peles caidas não eram consideradas belas, apenas mulheres "firmes" e a peça dava essa firmeza corporal, por isso era respeitável. Todas as classes sociais viam o corset como uma peça de embelezamento que criava uma boa figura. 


Tight Lacing
Há muitos mitos sobre a cintura finíssima dos vitorianos. Muito dos relatos sobre estas cinturas eram marketing de venda de uma beleza idealizada e ficções fetichistas.
Ao contrário do que se pensa, apesar de todo o puritanismo, os vitorianos não eram anti-sexuais. Os corsets eram vistos como belos e erotizantes, MAS davam respeitabilidade às mulheres, uma mulher sem corset não era vista respeitosamente.
Praticantes de tight lacing na era vitoriana eram extremamente raros. Os periódicos para mulheres do final da década de 1860 e 1870 e depois, no final dos anos 1880, traziam artigos fantasiosos de bondage e sadomasoquismo. Havia um fetichismo masculino sobre corsets e tight lacing de garotas e garotos enlaçados ou em crossdressing.
Esse tipo de informação deve ser visto como fantasias sexuais masculinas e não como comportamento habitual das mulheres vitorianas. Fetichismo sempre foi hábito de uma minoria populacional (até hoje) e predominantemente por homens (mulheres fetichistas são raras*) obcecados por tight lacing que fantasiavam ser enlaçados por prostitutas em bordéis. Esse fascínio underground pelo tigh lacing continua até hoje.

Uma boa comparação, pra melhor entendimento do fato é comparar corsets com saltos altos e tight lacing com saltos altíssimos: hoje, muitas mulheres usam saltos altos em seu dia a dia, mas sapatos de saltos altíssimos são menos/raramente usados. Se a mulher for numa festa, óbviamente ela colocará um salto mais alto que o habitual. O mesmo podia acontecer na Era Vitoriana, ao ir numa festa, a mulher apertar um pouco mais o laço, o que não fazia dela uma praticante do tight lacing
Então, imaginar que todas as mulheres vitorianas praticavam tight lacing e tinham cinturas minúsculas é como dizer que nós, atualmente, usamos salto de dominatrix no cotidiano. É  preciso ter cuidado pra não confundir fantasia fetichista com comportamento habitual das mulheres do século XIX.


O corset e as doenças:
Para os médicos da época, uma cintura perigosa era do tamanho de 38cm. Corsets vitorianos remanescentes em museus mostram que muitas cinturas da época equivalem ao tamanho atual de uma cintura P (algo em torno dos 65cm). Não eram dramaticamente pequenas como as ficções fetichistas e os médicos da época diziam que era. Vale lembrar que as mulheres usavam corset desde pelo menos 3 anos de idade então, obviamente, a peça moldava e acinturava o corpo desde então.

Os médicos vitorianos que eram contra a peça, diziam que a mesma provocava escoliose, ataque do coração, câncer de mama e deformação de bebês. A historiadora de moda Valerie Steele entrevistou médicos e enfermeiras pra descobrir quais doenças poderiam ser causadas pelo uso do corset mas não há nenhuma evidencia concreta sobre a peça ser responsável por alguma doença. Há relatos risíveis de médicos que acreditavam que o corset  fazia o sangue esquentar e subir para o cérebro, o que  provocaria efeitos lascivos e até mesmo tornaria mulheres estéreis. A maternidade era algo muito valorizado no século XIX.


Corsets hoje
Assim como lemos no post sobre a exposição La Mécanique des Dessous, o corset hoje se tornou internalizado por plásticas e lipos. Mas a peça em si reapareceu com os punks no fim dos anos 1970 com status subversivo. 
A peça, históricamente uma underwear, era usada pelos punks como peça externa, de estilo. Então, se hoje usamos corsets como uma peça de estilo, exteriorizada, devemos parte à subcultura punk. A peça também foi usada por góticos e reinventada nos anos 1980 por estilistas como Christian Lacroix, Vivienne Westwood, Thierry Mugler, Jean Paul Gaultier. Club Kids, garotas roqueiras e mais recentemente a cena heavy metal feminina e as cenas retrô e burlesca mantém a fama alternativa que a peça ganhou no fim do século XX.

Não podemos deixar de citar a importância de Madonna na percepção popular/mainstream do corset a partir dos anos 1980. Madonna foi a responsável por tirar do corset a fama de peça opressiva da sexualidade feminina (o que já era um mito) e dar à peça uma imagem de sexualidade feminina agressiva. Se hoje as mulheres usam o corset externamente como peça de sensualização, de "poder" feminino, muito se deve à ousadia de Madonna e à nova imagem  - menos underground e mais poderosa - que ela deu ao corset para a cultura de massa nos anos 80.

O corset vive seu momento de revival desde meados da década passada, graças à outra artista mainstream: Dita von Teese. Embora Dita tenha um passado underground alternativo-fetichista, ela mudou seu estilo pessoal quando foi abraçada pela cultura mainstream. Seus corsets mudaram de "sexualidade agressiva" para um status de feminilidade extrema, sensualidade e delicadeza. Essa nova imagem mais suavizada e feminina do corset atrai atualmente muitas mulheres e garotas que se identificam com o ideal feminino clássico de cintura fina, quadris largos, fragilidade e sensualidade.

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O texto é inspirado no conteúdo do livro Corset: A Cultural History da historiadora de moda Valerie Steele. 
*O livro Fetiche - Moda Sexo e Poder da mesma autora fala sobre o fato do fetichismo ser uma característica sexual majoritáriamente masculina, a questão do homem castrado. Uma minoria absoluta da população feminina é fetichista, muitas começaram a praticar tigh lacing por causa dos homens/maridos.

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